Colômbia dá exemplo para reduzir violência
As cidades de Bogotá e Medellín se tornaram laboratórios sobre como prevenir e como combater à criminalidade
Níveis de pobreza ainda são altos, mas essas cidades conseguiram reduzir suas taxas de homicídio em 79% e 90%, respectivamente
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Apontadas como as cidades mais violentas do mundo, Bogotá e Medellín, na Colômbia, estão se transformando nos mais avançados laboratórios do mundo de prevenção à criminalidade e, em especial, aos homicídios. Apesar de ainda manterem altos níveis de pobreza -cerca de 40% da população, semelhante às metrópoles brasileiras- essas duas cidades conseguiram reduzir, respectivamente, suas taxas de homicídio em 79% e 90%.
São exemplos que poderiam muito bem ser adotados -ou adaptados- pelas grandes e violentas cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro, onde, como na Colômbia no passado, se dissemina o crime organizado.
O que resta de violência nestas cidades colombianas continua ainda alto para padrões civilizados, mas são passos notáveis para comunidades em que se misturam e, muitas vezes, se indiferenciam narcotraficantes, paramilitares, guerrilheiros e quadrilhas de jovens, beneficiados por décadas de impunidade.
Nisso se destacam muito de Nova York, que tem padrões de renda de primeiro mundo e sem tantos focos de desagregação social. A engenharia por trás dos resultados da Colômbia revela uma rede de múltiplas e simultâneas ações que combinam prevenção com repressão, além de uma articulação nos mais diferentes níveis governamentais, mas sempre com ênfase no poder local, no qual o prefeito é o principal responsável pelo enfrentamento contra o crime e a violência.
Os operadores dessa engenharia concluíram que não adianta focar em apenas uma área específica - a repressão, por exemplo-, sem levar em conta fatores subjetivos como a auto-estima das pessoas.
Tanto melhorar a polícia e as prisões como criar uma ciclovia e bibliotecas podem, em diferentes graus, promover a segurança.
Medellín passou de capital da violência a laboratório da paz
Desde o início dos anos 90, homicídios caíram de 360 por 100 mil habitantes para 39
Governos nacional, estadual e municipal se uniram contra o narcotráfico, os paramilitares e as guerrilhas, entre elas Farc e ELN
GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA
Cantora e professora de música para crianças, Patrícia Cardona, uma ruiva de cabelos encaracolados e olhos esverdeados, engoliu, na manhã de 30 de setembro de 2002, uma série de grossas cápsulas de heroína, meticulosamente embrulhadas com películas de borracha para que não abrissem em seu estômago. Preparava-se para duas experiências inéditas e simultâneas em sua vida: conhecer Nova York e entrar para o narcotráfico. Receberia cerca de US$ 3 mil pela missão.
Antes de embarcar, foi flagrada e teve de cumprir 26 meses numa prisão feminina. "Eu tremia tanto que, no meu desespero, pensei que as cápsulas iriam se romper." Até então, ela estava cheia de fantasias românticas. Iria andar pelas ruas no outono de Nova York, com seus parques de folhas avermelhadas pelo chão e clima ameno, ao lado de seu namorado, que, como ela, carregava, naquele dia, a droga escondida no corpo. E que também foi preso.
Cardona continuou a ser professora na prisão. Recebia todas as semanas estudantes de escolas de Medellín e contava-lhes sobre o risco de entrar para o narcotráfico. No final, para não perder o hábito, acabava tocando e cantando músicas que compôs sobre suas desventuras. Desde a prisão, acabou o namoro e, até agora, não se dispôs a uma nova relação. "Uma coisa é um pai, uma mãe ou um policial falar sobre o risco das drogas. Outra, muita diferente, são meninos e meninas verem e ouvirem alguém dando seu próprio testemunho dentro da cadeia." Ela já está livre, mas continua com suas palestras cantadas e sobrevive ensinando violão e flauta para crianças.
Capital mundial
As palestras de Cardona aos jovens, a maioria deles de escolas públicas, eventuais candidatos a "mulas", nasceram com o programa "Delinqüir não vale a pena" e integram um dos mais extraordinários exemplos de ofensivas contra a violência de que se tem notícia.
No início dos anos 1990, a taxa de homicídio de Medellín, segunda maior cidade colombiana, com 1,8 milhão de habitantes -a região metropolitana tem 2,8 milhões-, era de 360 por 100 mil habitantes. Entende-se o que significa isso comparando com a cidade de São Paulo, onde ela é de 25 por 100 mil, ou seja, 14 vezes menor.
Não havia nenhum lugar do planeta, mesmo os conflagrados pela mais feroz das guerras, que remotamente se aproximasse da violência daquela cidade colombiana, centro de operação do narcotráfico e seus assassinos profissionais mesclando-se diferentes organizações guerrilheiras de esquerda, grupos paramilitares e gangues de adolescentes. Daí ter ganho o nada honorífico título de "capital mundial da violência".
Apenas recentemente, estudiosos de várias partes do mundo, especialmente do Terceiro Mundo, estão chegando para tentar entender como eles conseguiram baixar de 360 para 39 homicídios por 100 mil habitantes -índice ainda elevado, mas substancialmente menor e caindo ano a ano. É uma queda de quase 90%, notadamente veloz nos últimos três anos. "Medellín é um dos melhores laboratórios de paz de todo o mundo", afirma Martha Laverde, colombiana, especialista em educação do Banco Mundial.
O exemplo de Nova York
É um caso bem mais profundo do que o ocorrido em Nova York, onde um ex-prefeito (Rudolph Giulianni) chegou a ser cogitado como ganhador do Nobel da Paz pela redução dos índices de homicídio, atualmente em 7 por 100 mil habitantes. Além de Medellín ter a multiplicidade de fontes de violência de narcotraficantes, gangues de jovens, guerrilheiros e paramilitares, há os indicadores sociais, típicos latino-americanos. A taxa de pobreza é de 40% e o desemprego entre jovens, nos bairros mais desolados, chega a 70%. Lá estão as incubadoras para a formação de assassinos profissionais, conhecidos como "sicários", e para as "mulas", como a cantora Cardona, dispostas a traficar a droga para Estados Unidos e Europa.
A ofensiva dos governos nacional, estadual e municipal resultou no ataque ao narcotráfico, onde imperava o mítico Pablo Escobar, na desmobilização dos paramilitares, no enfraquecimento das guerrilhas das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e da ELN (Exército de Libertação Nacional). "Se tivéssemos tanta descoordenação entre as forças policiais como vocês, no Brasil, já teríamos desaparecido do mapa", diz o jornalista Alonso Salazar, impressionado com os debates e as disputas que testemunhou, entre autoridades brasileiras, por causa do PCC.
Jornalista investigativo, seu tema era o submundo de Medellín, o que o levou a acompanhar de perto os movimentos dos principais personagens da cidade. "Aprendi como funcionava a hierarquia do crime, especialmente nas favelas." Foi chamado para ser um dos principais assessores da prefeitura, onde, com seu conhecimento de repórter, ajudou a articular um plano de segurança -e, agora, se candidata para ser prefeito, no próximo ano.
Comuna 13
O símbolo máximo do caos era a Comuna 13 -um conglomerado de 25 favelas que se espalhavam pelas montanhas que cercam Medellín e produziam o grosso da violência. Não havia poder público e, para subir lá, só com autorização. Numa operação de guerra, o Exército ocupou a região e instalou bases militares. Puderam, então, chegar educadores, assistentes sociais e policiais comunitários.
Com o policiamento comunitário, as pessoas se sentiram mais confortáveis para denunciar os matadores, o que diminuiu a sensação de impunidade. Não apenas se treinaram melhor os policiais, mas se capacitou a comunidade sobre como lidar com a questão da segurança. Surgiram, voluntariamente, os "vigilantes do bairro", cuja missão é apenas informar as autoridades sobre movimentos suspeitos.
Disseminou-se a figura do mediador de conflito: alguém de respeito no bairro apto a intermediar disputas entre moradores. Disputas que, numa situação "normal", acabariam em pancadaria. Neste ambiente, diminuíram-se as resistências contra a campanha de desarmamento. "O essencial é que eles estão combinando, na medida certa, ações repressivas com preventivas", analisa Laverde, do Banco Mundial.
Jovens envolvidos na marginalidade foram convidados a trabalhar como educadores e recebem um salário para manter a ordem na cidade. Jhon Albeiro Yalí já tinha passado um ano na prisão por causa da guerra de gangues. Hoje, ele, uniformizado de chapéu e camiseta azul, orienta pedestres a se prevenirem de acidentes de trânsito. "Sem isso, eu não teria perspectiva", orgulha-se. "Precisávamos trabalhar a auto-estima da população", diz Alonso Salazar. "Achávamos que a violência era, além de um reflexo da impunidade, uma indicação da falta de auto-respeito."
Muitas vezes, eram os grupos marginais que ofereciam proteção e assistência social, disfarçando-se de poder público.
A força da biblioteca
Além das medidas repressivas, preventivas e educacionais, implementaram-se reformas urbanas nos bairros mais pobres, alguns deles nas montanhas, totalmente isolados. Construíram-se escadas, promoveu-se a coleta do lixo, escolas foram ampliadas, abriram centros de saúde e ofereceu-se um sistema de transporte -em alguns casos, de teleférico.
Para acompanhar, em detalhes, a evolução de cada indicador, nasceu um entidade civil chamada "Como Vamos Medellín", cujos resultados são amplamente divulgados pela mídia. É uma espécie de termômetro para medir qualidade de vida, em que se contabilizam desde seqüestros, roubos, furtos até evasão escolar, gravidez precoce, renda dos trabalhadores e desemprego.
Neste momento, estão construindo numa das regiões mais pobres uma imensa biblioteca, em meio ao verde para servir de ponto de encontro tanto quanto de leitura. A idéia é que, em cada bairro, o principal centro seja uma biblioteca. "Achamos que quem gosta de ler não gosta de matar", aposta Salazar.
Hoje, Sanchez mostra a jovens o que não fazer
COLUNISTA DA FOLHA
No topo do morro do Socorro, uma das favelas da Comuna 13, onde se concentrava a violência de Medellín, Harold Sanchez, 36, um negro alto e musculoso, aprecia a vista, na manhã ensolarada de 28 de setembro. "Adoro ficar vendo a paisagem", diz, abrindo um sorriso. Rapidamente, ele informa que há o motivo. Preso sob acusação de seqüestro -"uma injustiça"-, foi libertado há poucos meses da penitenciária, onde ficou por sete anos.
Na prisão, ele participou de uma articulação para tentar reduzir a insegurança de Medellín, à qual se deve parte do avanços dos indicadores de homicídio. Muitas das lideranças do crime organizado estavam na penitenciária Bela Vista em que Sanchez cumpria pena e que, no passado, foi conhecida como a mais violenta do mundo. "Fui contatado pelo governo para ajudar a realizar o entendimento entre as lideranças."
Lá se encontravam chefes de gangues, narcotraficantes, grupos paramilitares da AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia) e da guerrilhas como Farc e ELN; não raro, eles se acertavam lá dentro, só que no campo de futebol, enquanto as guerras prosseguiam do lado de fora. "Com um entendimento dentro da prisão, a briga poderia se acalmar nos bairros", raciocinava Sanchez. O comando seria obedecido. Isso reforçava as conversas feitas pelo governo do presidente Álvaro Uribe para que os paramilitares se desmobilizassem e, com isso, tivessem ajuda para a reintegração na sociedade.
Eram negociações complexas. Em Medellín, a violência estava tão integrada ao cotidiano que os assassinos se sentiam protegidos por Deus. Eram devotos da Virgem Maria de Auxiliadora. Um padre chegava a benzer não só os matadores, mas as motos usadas nos ataques. Narcotraficantes eram católicos fervorosos e ofereciam doações às igrejas e aos mais pobres. Havia uma rede de corrupção que envolvia Judiciário, polícia e imprensa. A regra era a impunidade. Via-se o narcotráfico como, no Brasil, vemos o jogo do bicho.
Por isso, segmentos da sociedade criaram programas para estabelecer novos valores, com destaque à juventude. Livre, Sanchez integra uma dessas ações. Seu emprego é levar jovens das escolas públicas para conversar com presos para que entendam o risco que correm ao caírem na marginalidade.
Bogotá combinou repressão com urbanismo e educação
Desde 1993, taxa de homicídios caiu quase 80%, chegando a 17 por 100 mil habitantes
Além de transporte público e ciclovias, capital investiu no ensino, tornando-se o epicentro na América Latina da idéia de Cidade Educadora
Luiz Angel Blandon, 38, ex-guerrilheiro das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), tem entre suas funções distribuir gratuitamente livros em pontos de ônibus de Bogotá. É um projeto chamado "Livros que voam": o beneficiário precisa se comprometer a passar o livro adiante e exigir que o próximo a recebê-lo não interrompa a corrente literária. "Não fazia mais sentido ficar guerreando", explica.
Personagens como Blandon são uma das explicações da redução da violência em Bogotá. De 1993 até este ano, a taxa de homicídios da cidade caiu quase 80% e está em 17 por 100 mil habitantes, quase igual à da cidade de São Paulo, o que significa dizer que, apesar do notável avanço, ainda está longe do satisfatório. Como aceitou deixar as armas, Blandon entrou em um programa público de reinserção. Ganha um salário para ajudar a melhorar Bogotá, promovendo, entre outras tarefas, a corrente literária. Além desse ex-guerrilheiro, os livros também ajudam a explicar o avanço na segurança. "A cidade investiu, além do aprimoramento da repressão, em urbanismo combinado com educação", afirma o sociólogo Jairo Arboleda, responsável no Banco Mundial, na Colômbia, pelo estímulo a parcerias comunitárias com o setor público.
Bogotá criou nos últimos anos uma rede de gigantescas bibliotecas em bairros mais pobres, cujo papel primordial é recuperar o espaço público deteriorado e facilitar a convivência. O impacto visual dessas construções é semelhante ao dos CEUs, as modernas e amplas escolas públicas na periferia de São Paulo.
O acesso à rede de bibliotecas é facilitado por uma ciclovia de 305 quilômetros e, mais importante, por um corredor de ônibus batizado de TransMilênio. A prefeitura se inspirou em Curitiba, com seus bi-articulados e o pagamento antecipado do bilhete feito em imensas e transparentes cabines na rua. A diferença é que, em Bogotá, o corredor não só levou transporte rápido e de qualidade às áreas mais distantes como se transformou em imensos calçadões para pedestres, alguns deles ajardinados ou com fontes de água. "É impressionante como o TransMilênio subiu a auto-estima dos moradores. Virou um motivo de orgulho coletivo", afirma Arboleda.
Impacto do urbanismo
Os projetos urbanísticos recuperaram a região central de Bogotá, tão deteriorada como as das grandes cidades brasileiras -e isso atraiu mais pessoas para as ruas. Praças foram criadas ou reformadas. Aos domingos, as principais vias são fechadas ao trânsito, agora exclusivas para pedestres e ciclistas.
Assim com em Medellín o epicentro da violência estava na Comuna 13, em Bogotá a concentração se repetia num bairro com o sugestivo nome de Cartucho -a versão ainda mais piorada da Cracolândia, em São Paulo. Avaliou-se que ali já não havia mais jeito. O poder municipal transformou toda aquela área em um imenso parque e tratou de encaminhar seus moradores para outros locais.
Para preencher essas regiões recuperadas, a prefeitura decidiu promover constantes shows de música, entre várias outras ações culturais como festivais de teatro e de dança. Os efeitos dessas iniciativas eram vistos no surgimento de uma nova vida noturna, antes limitada porque as famílias tinham medo de sair de casa.
Evidentemente essas medidas seriam frágeis se não tivessem aumentado o número de policiais e aprimorado seu treinamento -passaram a receber cursos na universidade-, não fossem implantados núcleos de policiamento comunitário e não se sofisticassem os controles na prisão para reduzir a força do crime organizado. Houve um treinamento específico para os carcereiros. Foi fundamental o esforço dos governantes em tentar desarmar a guerrilha e os paramilitares.
Mas a engenharia social de Bogotá é ainda mais complexa, e, como em Medellín, motivada por um trauma coletivo. É a sensação de um colapso provocado pela generalização da violência estimulada pela junção de narcotraficantes, paramilitares, guerrilheiros e quadrilhas. Tudo isso se potencializava nos bairros pobres, com seus jovens desempregados, baixa escolaridade, desestrutura familiar, violência doméstica, falta de opções de lazer, gravidez precoce. "Sentíamos que não tínhamos tempo a perder. Tudo parecia urgente", conta a jornalista colombiana especializada em violência Bibiana Mercado, agora na ONU. Estavam em Bogotá muitos dos alvos dos cartéis de Cali e, especialmente, de Medellín. Políticos, promotores, juízes, jornalistas eram mortos rotineiramente.
Pactos com a guerrilha
Diante do emaranhado de fontes de violência, apenas uma ofensiva simultânea em vários flancos teria alguma chance de funcionar, a começar de um pacto político com as forças clandestinas.
O chefe de Luiz Blandon, o ex-combatente das Farc, hoje com seus livros distribuídos em pontos de ônibus, é o advogado Darío Villamizar, ex-guerrilheiro do M-19. No passado, o M-19 destruiu o prédio da Suprema Corte e matou 70 pessoas, entre elas 11 juizes. "Aprendemos que a paz era o melhor caminho", conta Villamizar, responsável pela inserção na sociedade de ex-guerrilheiros e paramilitares que abandonaram as armas. "O que fazemos é transformá-los em empreendedores para que toquem sua vida."
Depois de abandonar as armas, líderes do M-19 montaram o "Observatório da Paz". Um de seus programas, dirigido por Vera Grabe, é disseminar a cultura do entendimento e do diálogo nos bairros mais violentos. "Sabemos o impacto positivo que se alcança quando aproximamos as crianças e os jovens da cultura. A música, a dança, o teatro, as artes plásticas, a comunicação prestam-se como fonte de realização e vacina contra a marginalidade", diz.
Para ajudar a disseminar esse tipo de ação, o Unicef sedia um projeto chamado "Aliança para a Paz". Coletam-se as mais diversas experiências, que são sistematizadas, formando um banco de êxitos a ser compartilhado nos diferentes níveis de governo. A Secretaria de Educação de Bogotá, por exemplo, mantém um laboratório de pedagogia comunitária, cuja missão é transferir todo esse conhecimento para a rede de ensino -ela integra a lista de entidades associadas da "Aliança para a Paz".
Pela educação
Melhorar a educação formal foi um dos ingredientes do plano amplo contra a violência. O poder público se empenhou em aumentar a matrícula, reduzir a evasão e, através do treinamento para os professores, oferecer melhor qualidade de ensino. Bogotá é o epicentro, na América Latina, da idéia de Cidade Educadora, segundo a qual todos os serviços públicos e privados da cidade devem estar conectados às escolas.
Os empresários de Bogotá acreditaram que poderiam fazer a diferença na questão educacional, interessados diretos na questão da segurança, afinal viviam ameaçados, e na produção de mão-de-obra qualificada. "Nossa contribuição foi focada na gestão, que é o que mais entendemos", afirma Guilhermo Carvajalino, principal executivo do movimento "Empresários pela educação".
Os últimos cinco prefeitos eleitos de Bogotá - antes eram indicados- tiveram a assessoria ininterrupta dos técnicos indicados pelo grupo de empresários. Isso explica, em parte, por que o nível educacional da cidade, medido em testes, é o mais elevado do país.
(GILBERTO DIMENSTEIN)
Prefeito "louco" mobilizou a sociedade
COLUNISTA DA FOLHA
Filósofo, matemático e pedagogo, Antanas Mockus assumiu, em 95, a prefeitura de Bogotá e, em meses, determinou que bares fechassem mais cedo para reduzir riscos provocados pelo álcool. Apanhou não só dos amantes das noitadas, mas porque a medida parecia sem importância numa cidade convulsionada pela guerra de quadrilhas, com 4.300 assassinatos por ano.
No auge da polêmica, ele levou um grupo de jovens ao cemitério; era exatamente o número dos que teriam morrido, segundo os cálculos da prefeitura, sem a "lei seca". Tirou uma foto deles na frente das covas e lembrou que, naquele momento, já estariam não em cima, mas debaixo da terra. Virou a opinião pública a seu favor. "O crime é o resultado do fracasso da pedagogia." Por causa dessa idéia, tratou de adotar ações para mudar a cultura do morador e, assim, gerar um ambiente mais pacífico.
Não foram poucos os que o chamaram de "louco" e "palhaço" quando ele contratou mímicos. "O trânsito, com seus inúmeros acidentes, era o melhor reflexo de nossa selvageria." Os motoristas não tinham o hábito, por exemplo, de respeitar a faixa de pedestres. E, aí, entravam os mímicos, fazendo brincadeiras com os transgressores, obviamente constrangidos. As multas viriam mais tarde. A prefeitura distribuía centenas de milhares de cartões que mostrassem aprovação e desaprovação. "Rapidamente, as pessoas, em vez de xingar ou de sequer reclamar, mostravam os cartões. Crianças aprenderam a vaiar quem avançasse na faixa."
Para que todos visualizassem os traumas de trânsito, Mockus mandava pintar cruzes no asfalto exatamente no local em que ocorriam os acidentes. Criou o hábito de divulgar todos os meses, sem exceção, a estatística de homicídios na cidade, acompanhada pela opinião pública como se fosse resultado do campeonato de futebol.
Tal atitude educativa, segundo ele, deveria ser levada para atividades da cidade. Os centros de recuperação de jovens infratores são tidos como modelo mundial -extremamente focados na aprendizagem e administrados por uma entidade privada.
70% dos jovens assassinados são negros
Perfil das vítimas, revelado em relatório das Nações Unidas sobre violência contra crianças, é tema de debate na Folha
Segundo dados de 2000, 16 crianças e adolescentes foram assassinados por dia. Desses mortos, 14 tinham entre 15 e 18 anos
DA REPORTAGEM LOCAL
Em cada grupo de dez jovens de 15 a 18 anos assassinados no Brasil, sete são negros. A raça também representa 70% na estimativa de 800 mil crianças brasileiras sem registro civil. Entre os indicadores negativos, os negros só perdem para a população indígena na taxa de mortalidade infantil.
Os números, contidos no relatório "Estudo das Nações Unidas sobre a Violência contra Crianças", encomendado pela ONU (Organização das Unidas), mostram que o perfil das vítimas da violência vai muito além da faixa etária.
"A violência não tem só idade. Tem cor, raça, território. As vítimas são os negros, os pobres, os moradores de favelas", afirmou a psicóloga Cenise Monte Vicente, coordenadora do Escritório do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) em São Paulo.
A declaração foi feita na última quarta-feira, durante debate sobre a situação da violência contra crianças no Brasil e no mundo, promovido pela Folha e pelo Unicef e com a mediação do jornalista Gilberto Dimenstein, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha.
Nesse dia, o relatório, feito pelo professor e pesquisador Paulo Sérgio Pinheiro, foi apresentado na Assembléia Geral das Nações Unidas. Pinheiro foi convidado como especialista independente pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan.
O documento cita relatórios de 132 governos e consultas a organizações não-governamentais. A realidade brasileira é descrita por dados como os do SIM/DataSus (Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde). Segundo estatísticas de 2000, 16 crianças e adolescentes foram assassinados por dia, em média. Desses mortos, 14 tinham entre 15 e 18 anos. Nessa faixa etária, 70% eram negros.
"Se somarmos as 14 mortes por dia, é mais de um Boeing a cada duas semanas, sendo a maioria formada por negros", afirmou Cenise, referindo-se à tragédia com o vôo 1907 da Gol, que vitimou 154 pessoas. "É importante investigar as causas da tragédia do Boeing. Mas em relação a essas mortes [de jovens e negros], a gente não tem a mesma atitude e vigilância. Alguma coisa está errada."
Segundo Cenise, o alerta também vale para a situação da criança indígena no Brasil. O relatório cita que a média de óbitos entre crianças até um ano de idade é de 47 por mil nascidos vivos. A média nacional foi de 26 óbitos em 2004.
As preocupações com os aspectos raciais e étnicos da violência estarão no plano de colaboração do Unicef com os países onde atua, elaborado a cada cinco anos. "Vamos fazer um corte [separação] racial e étnico e sensibilizar os gestores públicos e as ONGs para tornar esse padrão inaceitável", disse.
Nada cordial
Para o advogado Oscar Vilhena Vieira, diretor-executivo da ONG Conectas Direitos Humanos e professor da Escola de Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas), que também participou do debate, as estatísticas de homicídio desmentem a visão do Brasil como um país cordial. "O Brasil não tem nada de país cordial. É um país profundamente violento, especialmente com jovens, negros e moradores das periferias."
Essa violência, segundo o advogado, está presente na sociedade e no Estado. "Parece até que se treina tiro tendo o jovem como alvo, tanto do lado dos bandidos como o das instituições de Estado", disse.
Vieira afirma que a legislação brasileira -entre elas, a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente- avançou nos últimos anos, mas não impediu que a sociedade e o Estado continuassem "absolutamente negligentes".
Para exemplificar, Vieira citou um outro dado contido no relatório. O documento reproduz levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 2004, que estima que existam 80 mil meninos e meninas em abrigos -87% deles tinham família e somente 5% eram órfãos. "Essas crianças estão sendo objeto de absoluta negligência. Não necessariamente da família, que muitas vezes não tem capacidade de dar conta dessas crianças, mas do Estado, que tem obrigação com essa família."
Violência social
Dalka Chaves de Almeida Ferrari, psicóloga com especialização em enfrentamento da violência doméstica contra criança e coordenadora do Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae, foi outra especialista a participar do debate. Segundo ela, pesquisa realizada pelo centro, com apoio do Unicef, apontou a "violência social" como o principal tipo de violência enfrentada nas escolas. O levantamento foi realizado em 20 municípios brasileiros, de várias regiões do país.
Os educadores responderam a questionários. O item "violência social" foi o mais citado, na frente da violência física, sexual ou doméstica. "A questão mais presente e mais difícil de os educadores lidarem é a criança que chega desnutrida, que chega sem comida, que chega com a roupa rasgada. E isso se repete em toda as escolas", afirmou.
GILBERTO DIMENSTEIN
A vacina antiviolência
Os casos de Bogotá e Medellín mostram que ela já foi inventada e não depende de pôr fim à miséria |
OS ataques do PCC combinados às eleições tiraram o foco de um dos fatos sociais mais interessantes do país: a veloz e consistente redução do número de homicídios em São Paulo. Nos últimos cinco anos, a queda foi de 51%, devido, em boa parte, à evolução da segurança da região metropolitana e, especialmente, da capital, onde houve avanços nas áreas mais violentas.
Embora fundamental, só o aprimoramento do policiamento não explica o fenômeno. Olhando mais de perto os bairros em que mais caiu a violência, vemos uma teia de ações que envolvem a mobilização comunitária, a atuação de entidades não-governamentais, o apoio de empresas, o trabalho com grupos de risco -os jovens-, as campanhas de desarmamento, a reforma de espaços públicos e a oferta de programas de complementação de renda.
Se o PSDB e seu candidato à Presidência, Geraldo Alckmin, têm motivos para apresentar os números da segurança como uma vitória, o PT também pode lembrar que programas seus na periferia de São Paulo, como a ampliação da renda mínima e a criação de áreas de convivência, exerceram impacto nos índices de homicídio. Uma das melhores experiências de segurança, no país, é Diadema, comandada por um petista.
Saber quem deve faturar ou não com um avanço social é compreensível num ano eleitoral. Mas, convenhamos, é uma visão medíocre. Digo isso pois acabo de voltar da Colômbia, onde fui conhecer experiências em Bogotá e Medellín, apontadas como as cidades mais violentas do mundo, hoje convertidas em laboratórios de paz. Apenas em Medellín, por exemplo, a taxa de assassinatos caiu em 90%; boa parte dessa queda ocorreu nos últimos três anos.
As duas cidades mostram que a vacina para reduzir níveis de violência, mesmo em lugares pobres, já foi inventada e não depende de acabar a miséria. Isso significa que, apesar dos avanços em São Paulo, eles poderiam ser ainda mais profundos e rápidos. Significa ainda que o Brasil não precisa reinventar a roda para reduzir sua insegurança nas ruas.
Para nós, brasileiros, Bogotá e Medellín, com sua pobreza de Terceiro Mundo, são casos ainda mais interessantes que Nova York, onde a renda e o emprego são os de uma nação rica. Mais do que isso, a violência na Colômbia é extraordinariamente complexa, por misturar diversos grupos de guerrilheiros, narcotraficantes, paramilitares, gangues juvenis e assaltantes comuns.
A primeira lição que tiramos dali é: os três níveis de governo -nacional, estadual e municipal- trabalham articuladamente. O prefeito, o chefe da polícia, exerce forte papel na execução de planos de segurança. Essa é a prerrogativa dos prefeitos das regiões metropolitanas. Mas a polícia continua sendo nacional.
A cidade cobra o desempenho do prefeito em questões como roubo e furtos assim como sobre a limpeza das ruas e a qualidade de ensino.
Eles mexeram na polícia e no sistema prisional. Deram, por exemplo, cursos para carcereiros em universidades. Investiram em policiamento comunitário, mais próximo da população. Junto com a repressão, implementaram-se ações sociais que, mais uma vez, envolvem múltiplas frentes, como reformar espaços públicos, melhorar as escolas, criar centros de convivência comunitária, introduzir mecanismos de resolução de conflitos, focar em programas de inserção dos jovens.
Em Bogotá, melhorou-se o transporte público nos bairros mais pobres, abriram ciclovias, reservaram, em fins de semanas, as principais vias para pedestres, implantou-se uma gigantesca rede de bibliotecas. Parques foram feitos em áreas deterioradas. Usou-se das artes para gerar um senso de pertencimento entre jovens e como mecanismo para retomar as ruas. Os centros de recuperação de jovens infratores são tidos como exemplo mundial de eficiência, geridos, em contrato de gestão, por uma entidade privada.
Novamente acharemos, nessa rede, a articulação de vários níveis de poder, indo do bairro à Presidência.
Os habitantes de Bogotá e Medellín, apesar das conquistas, não estão satisfeitos, convencidos de que podem ir além, afinal a violência segue alta para padrões civilizados. E, aqui, outra lição: tornar a cidade habitável e segura não era e não é discurso de político em campanha, mas prioridade de todos, avaliada todo mês. A pressão não pára e faz do prefeito um educador da paz. O problema é menos de dinheiro que de competência administrativa e articulação local. Sem exagero, nenhum presidente, governador ou prefeito brasileiro pode se dar o direito de não conhecer como os colombianos desenvolvem essa vacina contra a violência. É uma questão de salvar vidas.
P.S. - Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a Colômbia, além da reportagem publicada hoje na Folha, pus mais dados em meu site, www.dimenstein.com.br.